Foto: Maurício Maron

A umbandista Carmosina Mota de Souza Santos, uma das lideranças religiosas da cidade de Ilhéus, residente na Rua Severino Vieira, 475, bairro do Malhado, completa, no próximo domingo, um século de vida.  Ela chega aos 107 anos, hoje (16), com muito vigor, voz possante e com uma memória invejável, relata fatos com riqueza de detalhes e conversa com muita clareza sobre lugares que compõem a sua história de vida.

A sua casa é perfumada com incenso duas vezes ao dia e na sua sala estão expostos seus retratos em festas culturais, com as vestes religiosas e também ao lado de diversos políticos. Conta que ACM era “amigão” e que sempre ia recebê-lo no Aeroporto quando vinha a Ilhéus. Há uma foto ao lado do babalorixá Pedro Farias, que foi uma referência do candomblé em Ilhéus, e de outros companheiros de trabalho espírita.

Entre as condecorações, estão o título de Cidadã Ilheense, um certificado da Federação Nacional de Umbanda e uma recente homenagem recebida na Delegacia da Mulher.  Mãe Carmozina é daquelas que ainda vai às urnas para escolher os governantes e, diga-se de passagem, está sempre a atrair políticos em seu entorno, talvez por conta de sua força religiosa e do grande número de seguidores. E com simpatia diz: “Eu voto de ousada”. 

Seja numa comemoração cívica, como o desfile de 7 de Setembro, ou numa festa popular, como o Carnaval, o seu lugar é sempre no palanque oficial das autoridades. E com suas baianas vestidas de branco e portando vasos de flores e água de cheiro, participa, há 32 anos, da lavagem da Catedral de São Sebastião e há 15 anos comanda os festejos de Iemanjá na cidade.

Origem – A filha dos índios Alvina da Mota Santos e Cândido José de Souza, nasceu no povoado de Caldeirão, atual município de Itaquara, e foi criada pela família de Joaquim Gavião, em Jaguaquara. Aos 13 anos, foi entregue de volta à Dona Alvina.  

Carmozina e sua mãe vieram a pé de Jequié para Água Preta (então distrito de Ilhéus e hoje Uruçuca) numa viagem que durou 22 dias. Ela reflete: “Minha mãe nunca entrou (subiu) numa embarcação (referindo-se aos meios de transporte, inclusive animais). Nessa viagem, quando dava quatro, cinco horas, ela encostava em qualquer lugar que tinha família e passava a noite, e no outro dia de manhã me botava na frente para andar. Naquele tempo, não existia o asfalto, o que existia era barro”. No percurso, a novidade que viu foram tachos enormes no fogo, com homens mexendo pedras pretas e derramando um caldo preto sobre a estrada de barro, que entendeu mais tarde ser o asfalto. “Minha mãe, índia, não suportava aquilo, achava tudo ignorância”, acrescenta.

Em Água Preta, na casa de sua irmã, chegou a trabalhar em roça de cacau para se manter. “Eu não conhecia cacau, eu conhecia café”, sentencia. Casou-se aos 17 anos com Anibal Evangelista Santos, que trabalhava na “Estrada de Ferro”, e foi morar na Rua do Soca Braço (atual Rua Evandro Magalhães), onde nasceram os filhos Crispim, que é funcionário da Polícia Civil, e Maria José, falecida há oito anos.

Ao chegar para Ilhéus, na década de 50, o casal se estabeleceu no Malhado de baixo, e em seguida, mudou-se para o Malhado de cima. “Morávamos no Alto do Amparo, nome que coloquei e permanece até hoje. Fui a primeira moradora de lá, fiz a primeira casa do local, em terreno doado pelo prefeito Pedro Catalão, uma casa de palha, rodeada de zinco, onde criei meus filhos. Lá nasceram José Carlos e Maria Conceição”, afirma.

Conta com entusiasmo que foi lavadeira de ganho. Lavou roupas para diversas famílias influentes da cidade, do Dr. Ernani Sá, Coronel Sinhô, Conceição Lopes, Alice Patury, Sá Barreto e de Tonico Bastos. Ela explica que lavava e gomava, e o ferro de passar era à brasa, acionado por um fole.  “Fazia goma com parafina para botar nas camisas para ficar bem brilhando. As calças tinham que ser enfestadas (vincadas na frente). Quem não tivesse um terno de linho, não era gente”, lembra.

Também foi feirante. Atuou com barraca na feira do Unhão, hoje Avenida 2 de Julho, onde vendia café e mingau. Não só na feira do Unhão, como também no tamarindeiro do Malhado. “Fui a primeira a se instalar ali,  para esperar o trem de ferro passar e vender aos passageiros doses de cachaça, com folhas de capim santo, erva-cidreira e temperada de mulher parida, mingau e mungunzá”. O único transporte que tinha, do Malhado ao Centro, caindo aos pedações, era o ônibus de Zé Ribeiro. “Lembro-me da rodoviária daqui, na Rua do Dendê, na Rua Tiradentes. Lembro da Sulba e da São Jorge. A Sulba quebrava não sei quantas vezes daqui para Itabuna.

E acrescenta que “a cadeia de Ilhéus ficava em frente à Ceplac, ali quem vai para o Pontal, onde ficavam os melhorzinhos. Quando a gente passava, os presos estavam sempre olhando a rua, lá do alto das grades, e desciam as latinhas amarradas num cordão pra gente colocar dinheiro, uma banana, um pão. E os bravos ficavam em Itacaré, com a cadeia na beira d´água.”.

Outra máxima que eu alcancei: “Naquela época, “mulher solteira” não saia na rua, só saía depois de 10 horas (22horas), tinha horário para sair, somente depois que as casadas e as moças se recolhiam, então, a rua ficava pública. Hoje em dia ninguém sabe quem é mulher-dama, quem é moça, ninguém sabe o que é casada, está tudo uma farofa só.”   

A Religião –  Mãe Carmozina explica que começou a trabalhar com a força espiritual depois de muito sofrimento, “porque eu carrego a força espírita desde menina. Para não sofrer, abandonei o catolicismo e entrei na lei cristã. Sofri muito!. Já fui muda, paralítica, asmática e já me levaram amarrada em cima de um caminhão para Nazaré das Farinhas. Tudo isso eu já passei até aceitar o espiritismo.” 

Relata que na Avenida Itabuna, na igreja Assembleia de Deus, uma vez ficou perturbada e quando se deu conta, estava uma bagaceira. “Já fui operada invisível de um tumor na barriga, com todos preocupados na mesa de operação. Aí veio um médico espírita de Salvador, olhou para mim e disse aos outros médicos: “não opere essa mulher que ela morre na sua mão. Essa mulher é espírita”. Eu saí me maldizendo: se fosse rica todo mundo me operava.  Depois, quando voltei para casa, não senti mais nada.”, enfatiza. E justifica que, por isso, fez caridade durante sete anos, oferecendo consulta sem cobrar um centavo. Depois de sete anos, foi liberada pelo seu guia espiritual para cobrar valores pequenos porque sua missão é fazer caridade.

A umbandista conta que soube, através dos filhos de santo, que seu guia chamou o seu marido e o advertiu para que ele não mais encostasse em sua cama. Para continuar com a força espiritual, ela renunciou ao sexo e permitiu que o esposo tivesse uma relação extraconjugal, que resultou em cinco filhos. “Tudo para ter o direito de trabalhar com resultados e evitar sofrimento”, explica.

Hoje, Carmozina possui 48 netos, 56 bisnetos e 20 tataranetos, incluindo os filhos do marido também por ela criados, além de uma quantidade grande de filhos de santo, espalhados em outras cidades da Bahia e outros estados, e até na Suíça e Estados Unidos.

Com respeito à crença, ela diz: “não uso pintura, não pinto unha, não corto o cabelo. Não aguentei mais sofrer, entreguei a mão à palmatória. Tinha que cumprir essa missão”. O seu terreiro de umbanda Sultão das Matas está localizado ao lado da residência, mas há uma comunicação ao fundo, e no Peji, há imagens em louça, resina e gesso, de orixás, de santos da Igreja Católica e de caboclos. Os atabaques tocam de 15 em 15 dias e toda sexta-feira há sessão mediúnica.

Sincretismo – Embora umbandista, a relação com outros cultores de terreiros de candomblé é a melhor possível. “Valtinho, Toinha, Nildinha, Ilza, Jecy, Nangancy, Laura somos todos amigos, agora a divisão das obrigações, cada qual no seu cada qual”, lembra.

A sacerdotisa umbandista frequenta a igreja católica do bairro onde reside, fala em Deus o tempo todo e vai sempre à missa da Misericórdia, no centro da cidade. Com orgulho, diz que Dom Mauro, bispo da Diocese de Ilhéus, é seu amigo e que já esteve na sua residência. Faz distinção também ao Padre Miro, que a visita sempre e é quem celebra a missa do seu aniversário. O Padre João é outro carinhosamente citado entre as autoridades do clero. 

Além do terreiro de umbanda, a família Carmozina possui um terreiro de candomblé, dirigido por sua filha, Conceição, localizado na Avenida  Esperança, em terreno doado pelo prefeito Antonio Olímpio. Além do ex-prefeito Antonio Olímpio, Carmozina cita em suas conversas o ex-prefeito Ariston Cardoso, a senadora Lídice da Mata, e disse que falou tanto com Jabes Ribeiro para que ele fechasse o canal em frente à Central de Abastecimento, sem êxito, mas que já conversou sobre o assunto com o prefeito atual Marão, a quem chama de Barão. E finalizou dizendo “Não posso deixar de fazer uma caridade, bateu a minha porta eu dou comida ou conforto espiritual.”. 

Texto do JBO adaptado

::Publicidade
Compartilhar Post:

2 thoughts on “Dona Carmosina, os 107 anos de uma mulher de crença e de fé

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *